domingo, 22 de junho de 2025

Samurai sim, santo jamais

 Sempre tive fascínio por artes marciais. Judô quando era moleque, um pouco de karatê na juventude, e, mais recentemente — antes da pandemia — muay thai e kendô. O gosto pela coisa vem de longe. Gosto de treinar, de estudar, de entender os estilos. Gosto também da mitologia toda: o guerreiro solitário, o código de honra, a espada que corta a própria vaidade. É bonito. Inspira. Mas vamos combinar uma coisa: gostar não significa perder o senso crítico.


Porque uma coisa que me incomoda profundamente — e que me parece uma epidemia nos dojos e nos círculos de fãs — é esse endeusamento acrítico dos samurais. Falam deles como se fossem monges franciscanos com espadas, protetores dos pobres, defensores da justiça, arautos da sabedoria eterna. Só faltam dizer que curavam escorbuto com um haicai.


Na prática, os samurais eram uma casta armada a serviço dos poderosos. Ajudavam os camponeses? Sim, claro... quando pagos pra isso. Ou quando era conveniente politicamente. A idealização que se vende hoje é mais marketing do que história. Kurosawa mesmo, no filme Os Sete Samurais, já dá o tom: os heróis ajudam a aldeia, mas não por altruísmo puro — é trabalho. Trabalho com espada, mas ainda assim, trabalho.


E aí chegamos ao caso mais curioso de todos: Miyamoto Musashi. O “maior samurai de todos os tempos”, segundo dez entre dez praticantes deslumbrados. Um ícone. Um mito. Um herói.


Agora pense comigo: estamos falando de um sujeito que, aos 15 anos, resolve largar tudo pra sair pelo mundo com uma espada na cintura procurando gente pra matar. Um mochileiro do sangue. Ele não queria salvar ninguém, proteger ninguém, fundar uma escola — ele queria duelar. Duelar e matar. E matou, viu? Foram mais de 60 duelos e uma pilha de corpos no currículo. Inclusive de um adolescente, herdeiro de uma escola rival, que ele fez questão de eliminar só pra deixar claro quem mandava no rolê. Heroico, né?


Sob a ótica moderna, isso tem outro nome: psicopata funcional. Mas vá dizer isso num dojo e veja o escândalo. "Ah, você está julgando com os valores de hoje!" Sim, estou. E também com os de ontem, os de sempre: matar por vaidade nunca foi exatamente um sinal de iluminação espiritual.


O mesmo vale pra outros ídolos nacionais. Monteiro Lobato, por exemplo. Está lá, no altar da literatura infantil. Criador do Sítio, da Emília, da Tia Nastácia — personagens eternizados na TV, no teatro, na escola. E também, sim, um racista e eugenista convicto, que deixou isso escancarado em suas obras e cartas. Mas vai dizer isso em voz alta que logo aparece alguém tentando relativizar. “Ah, era outro tempo.” Era, sim. Mas isso não apaga o que está escrito.


Então não, eu não consigo colocar Musashi num pedestal. Nem ele, nem nenhum outro samurai que passou a vida afiando espada e cortando pescoço pra resolver questões de ego e status. Admirar técnica, disciplina, estratégia? Claro. Isso é outra coisa. Agora, tratar assassino itinerante como mestre espiritual... aí já é demais até pra minha paciência de budôka.

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