Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski)
Chegou a minha atenção, graças à três
leitores, que existem grupos em que as punições são exageradas, ou injustas. Inadequadas.
Pediram que eu escrevesse algo a respeito.
Ser professor é uma das
experiências mais difíceis que se pode experimentar. É igualmente uma das mais
gratificantes. Entretanto existe muita coisa da dinâmica de ser professor que
não é ensinado na universidade. Uma dessas coisas, e que faz parte da ação
diária do professor, é a manutenção da ordem em sala de aula, e a punição
quando existe a transgressão dessa ordem social estabelecida.
É quase assustador de se pensar
que em todos os anos que eu fique na faculdade não tive sequer uma aula sobre como
administrar faltas, castigos, punições, erros, desatenções, negligências e
descuidos. Boa parte do que eu sei sobre o assunto hoje veio da minha
experiência pessoal ao lidar com as situações do dia a dia, a troca de
experiência com outros professores e com as pesquisas que eu fiz em busca do
meu auto-aperfeiçoamento.
E por que diabos eu estou falando
disso tudo aqui antes de falar de assuntos relacionados à espadinha? Porque eu
queria deixar claro para você, leitor, que aplicar punições não é uma coisa
fácil. Tem muitas variáveis a serem consideradas e se tem uma coisa que eu
aprendi ao longo dos anos é que muitas vezes a punição é usada de forma errada.
Sometimes the punishment don’t fit the crime (Aerosmith)
Punir de forma adequada é uma das
coisas mais complicadas que existem. A nossa sociedade ocidental tem mais ou
menos 5 mil anos e até agora não aprendemos ou desenvolvemos uma forma eficaz
de punição. Mas para jogar um pouco de luz sobre esse assunto temos que separar
o que é punição, o que é erro, e o que é falta.
Como o swordplay é uma atividade
esportiva faz sentido começar com a palavra falta. Falta é o ato ou efeito de
faltar alguma coisa; deixar de agir da forma que é esperada; agir
deliberadamente contra as regras. É a infração da regra como vemos no futebol,
ou em outros esportes.
No cotidiano a falta tem um peso
de intencionalidade que o erro não desfruta. O erro é entendido como um reflexo
de uma ação mal sucedida. Pode também significar uma tentativa de inovação, fazendo
parte de um duro processo de aprendizagem. Ninguém é imune ao erro. Partindo dessa
premissa, o erro é um ato a ser corrigido.
A punição, por sua vez, é um
processo no qual se reduz a probabilidade de determinada ação ou atitude voltar
a ocorrer através da apresentação de um estímulo aversivo, ou a retirada de um
estímulo positivo após a emissão de determinado comportamento indesejado. Essa
é a definição da psicologia comportamental e pode muito bem ser estendida para outras
áreas da vida social. Quando o motorista estaciona em local proibido ele recebe
uma multa, algo que lhe é danoso ou ofensivo. Dessa forma, espera-se que o medo
de receber outra multa impeça o motorista de estacionar novamente em local
proibido.
Tanto para aqueles que legislam
quanto àqueles que acatam e promovem a norma social vigente devem ter noção de
saber quando uma punição é justa ou não. A criança que intencionalmente destrói
um brinquedo de outra criança deve ser punida de forma diferente daquela que,
por acidente, quebra um brinquedo. É o que os advogados chamam de “dolo”, ou
intenção de fazer alguma coisa.
E o que o swordplay tem a ver com
isso? – pergunta a adorável menininha de cabelos loiros encaracolados e olhos clarinhos
segurando uma lança capaz de atravessar sem dificuldades um javali. Tem a ver que se um líder quer ser um líder
de verdade tem que aprender a dura lição de separar o que é erro do que é
falta.
“Educai as crianças e não será preciso punir os homens” (Pitágoras)
Quando eu fazia kenjutsu no
Instituto Niten aqui de Brasília tinha como sensei um dos homens mais
fantásticos que já conheci: o senpai Ricardo Lopes. Atrevo-me a dizer que se
houvesse uma guerra dentro do Niten e de um lado ficasse o sensei Jorge
Kishikawa e do outro o senpai Ricardo eu não teria dúvidas de lutar ao seu
lado.
Devido a compromissos
profissionais ele teve de se afastar um pouco dos treinos. A sua esposa, senpai
Silvana, assumiu o treino com a ajuda de outros graduados. Entretanto a senpai Silvana
não tinha o mesmo carisma e trato do senpai Ricardo. Para piorar a situação ela
passou a exigir demais de todos nos treino. Não que aquilo me incomodasse. Eu gosto
da disciplina japonesa. Mas nem todos se sentem assim. Muitos amigos que hoje
praticam apenas swordplay ou fazem parte do Clube do Livro saíram por causa
dela. Do seu jeito muito duro de puxar os treinos. Mas era nas punições que ela
se destacava. Qualquer coisa era o bastante para se pagar “sapinhos” (uma série
de agachamentos feitos com a coluna rela e as mãos atrás da cabeça). Em certa
ocasião, um colega de treino não compreendeu bem a instrução dada por ela, por
entrar em conflito com uma instrução anterior dada pelo senpai Ricardo,
perguntou a ela qual era a forma correta.
- Fulano! Quem é você para
questionar um instrutor? Trinta sapinhos, agora!
Mesmo que eu não me incomodasse
com a disciplina do Niten eu fiquei incomodado com aquela situação. Um incômodo
que cresceu quando o meu colega resolveu abandonar os treinos. O mesmo se deu
comigo. Eu não me sentia mais “em casa” com aquele tipo de tratamento. E olha
que eu já tinha investido pesado numa armadura de treino (bogu) e nas espadas (shinais).
Agora, raciocine comigo, você leitor
que também é líder de um clã: se uma punição desmedida fez uma pessoa abandonar
o kenjutsu, numa das mais sólidas instituições do Brasil, imagine o que uma
bronca, punição ou corretivo mais duro e sem justificativa podem fazer com o
seu grupo? Se você forçar demais a barra pode chegar o dia que vai ter de
treinar sozinho!
Anteriormente eu falei que o erro
não deve ser confundido com a falta. Embora o erro seja humano, a sua afirmação
não é uma justificativa e sim uma explicação. Erramos porque não somos
perfeitos. Erramos porque não fomos ensinados corretamente.
E se erramos, o erro pode ser uma
forma de aprendizado? Uma forma sim, mas não a forma. Se você parte da premissa
que só se aprende errando tem alguma coisa muito errada em você. Alguns erros
são mortais e irreversíveis – paga-se um preço muito alto para se aprender com
erros, eis o porque seus ensinamentos são tão valiosos.
Corrigimos o erro para que aquele
que erra, tomada a consciência de seu ato, faça direito (ou esforce-se mais) da
próxima vez. Não se deve punir o erro e sim punir a negligência, a desatenção e
o descuido.
Costumeiramente nos acertamos em
zonas proibidas durante os treinos dos cavaleiros da virtude. Isso porque
arriscamos acertar e romper defesas cada vez melhores. O pedacinho do ombro que
está descoberto está perto demais do pescoço, ou a postura dele deixa um pedaço
da cintura descoberta. E o que acontece quando acertamos nossos colegas de
treino nesses momentos de tentativa e erro? Pedimos desculpa, sorrimos e
entregamos à vitória a quem acertamos. E só. Não precisamos ouvir broncas, nem
sermos escrachados na frente de todo mundo. Especialmente não precisamos pagar
sapinhos – eu não pagaria já que meus joelhos me abandonariam depois disso.
Eu aprendi com o Dr. Mário Sérgio
Cortella que se deve elogiar em público e repreender em particular. E isso fez
maravilhas para a minha aula. Imagino como poderia beneficiar centenas de
grupos de swordplay Brasil à fora.
A grande lição a aprender aqui é
ser parcimonioso. Pergunte a si mesmo: a pessoa errou ou cometeu
deliberadamente uma falta? Estou sendo justo na punição? Se fosse comigo eu ficaria
com raiva/vergonha e não voltaria no próximo treino? Pense nisso.
Serviço:
https://draikaner.wordpress.com/o-grupo/boffering/
muito bom
ResponderExcluirShow,parabens pelo excelente texto
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