domingo, 23 de outubro de 2016

Errar ou faltar?

Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski)
Chegou a minha atenção, graças à três leitores, que existem grupos em que as punições são exageradas, ou injustas. Inadequadas. Pediram que eu escrevesse algo a respeito.

Ser professor é uma das experiências mais difíceis que se pode experimentar. É igualmente uma das mais gratificantes. Entretanto existe muita coisa da dinâmica de ser professor que não é ensinado na universidade. Uma dessas coisas, e que faz parte da ação diária do professor, é a manutenção da ordem em sala de aula, e a punição quando existe a transgressão dessa ordem social estabelecida.

É quase assustador de se pensar que em todos os anos que eu fique na faculdade não tive sequer uma aula sobre como administrar faltas, castigos, punições, erros, desatenções, negligências e descuidos. Boa parte do que eu sei sobre o assunto hoje veio da minha experiência pessoal ao lidar com as situações do dia a dia, a troca de experiência com outros professores e com as pesquisas que eu fiz em busca do meu auto-aperfeiçoamento.

E por que diabos eu estou falando disso tudo aqui antes de falar de assuntos relacionados à espadinha? Porque eu queria deixar claro para você, leitor, que aplicar punições não é uma coisa fácil. Tem muitas variáveis a serem consideradas e se tem uma coisa que eu aprendi ao longo dos anos é que muitas vezes a punição é usada de forma errada.

Sometimes the punishment don’t fit the crime (Aerosmith)
Punir de forma adequada é uma das coisas mais complicadas que existem. A nossa sociedade ocidental tem mais ou menos 5 mil anos e até agora não aprendemos ou desenvolvemos uma forma eficaz de punição. Mas para jogar um pouco de luz sobre esse assunto temos que separar o que é punição, o que é erro, e o que é falta.

Como o swordplay é uma atividade esportiva faz sentido começar com a palavra falta. Falta é o ato ou efeito de faltar alguma coisa; deixar de agir da forma que é esperada; agir deliberadamente contra as regras. É a infração da regra como vemos no futebol, ou em outros esportes.

No cotidiano a falta tem um peso de intencionalidade que o erro não desfruta. O erro é entendido como um reflexo de uma ação mal sucedida. Pode também significar uma tentativa de inovação, fazendo parte de um duro processo de aprendizagem. Ninguém é imune ao erro. Partindo dessa premissa, o erro é um ato a ser corrigido.

A punição, por sua vez, é um processo no qual se reduz a probabilidade de determinada ação ou atitude voltar a ocorrer através da apresentação de um estímulo aversivo, ou a retirada de um estímulo positivo após a emissão de determinado comportamento indesejado. Essa é a definição da psicologia comportamental e pode muito bem ser estendida para outras áreas da vida social. Quando o motorista estaciona em local proibido ele recebe uma multa, algo que lhe é danoso ou ofensivo. Dessa forma, espera-se que o medo de receber outra multa impeça o motorista de estacionar novamente em local proibido.

Tanto para aqueles que legislam quanto àqueles que acatam e promovem a norma social vigente devem ter noção de saber quando uma punição é justa ou não. A criança que intencionalmente destrói um brinquedo de outra criança deve ser punida de forma diferente daquela que, por acidente, quebra um brinquedo. É o que os advogados chamam de “dolo”, ou intenção de fazer alguma coisa.

E o que o swordplay tem a ver com isso? – pergunta a adorável menininha de cabelos loiros encaracolados e olhos clarinhos segurando uma lança capaz de atravessar sem dificuldades um javali.  Tem a ver que se um líder quer ser um líder de verdade tem que aprender a dura lição de separar o que é erro do que é falta.

“Educai as crianças e não será preciso punir os homens” (Pitágoras)
Quando eu fazia kenjutsu no Instituto Niten aqui de Brasília tinha como sensei um dos homens mais fantásticos que já conheci: o senpai Ricardo Lopes. Atrevo-me a dizer que se houvesse uma guerra dentro do Niten e de um lado ficasse o sensei Jorge Kishikawa e do outro o senpai Ricardo eu não teria dúvidas de lutar ao seu lado.

Devido a compromissos profissionais ele teve de se afastar um pouco dos treinos. A sua esposa, senpai Silvana, assumiu o treino com a ajuda de outros graduados. Entretanto a senpai Silvana não tinha o mesmo carisma e trato do senpai Ricardo. Para piorar a situação ela passou a exigir demais de todos nos treino. Não que aquilo me incomodasse. Eu gosto da disciplina japonesa. Mas nem todos se sentem assim. Muitos amigos que hoje praticam apenas swordplay ou fazem parte do Clube do Livro saíram por causa dela. Do seu jeito muito duro de puxar os treinos. Mas era nas punições que ela se destacava. Qualquer coisa era o bastante para se pagar “sapinhos” (uma série de agachamentos feitos com a coluna rela e as mãos atrás da cabeça). Em certa ocasião, um colega de treino não compreendeu bem a instrução dada por ela, por entrar em conflito com uma instrução anterior dada pelo senpai Ricardo, perguntou a ela qual era a forma correta.

- Fulano! Quem é você para questionar um instrutor? Trinta sapinhos, agora!

Mesmo que eu não me incomodasse com a disciplina do Niten eu fiquei incomodado com aquela situação. Um incômodo que cresceu quando o meu colega resolveu abandonar os treinos. O mesmo se deu comigo. Eu não me sentia mais “em casa” com aquele tipo de tratamento. E olha que eu já tinha investido pesado numa armadura de treino (bogu) e nas espadas (shinais).

Agora, raciocine comigo, você leitor que também é líder de um clã: se uma punição desmedida fez uma pessoa abandonar o kenjutsu, numa das mais sólidas instituições do Brasil, imagine o que uma bronca, punição ou corretivo mais duro e sem justificativa podem fazer com o seu grupo? Se você forçar demais a barra pode chegar o dia que vai ter de treinar sozinho!

Anteriormente eu falei que o erro não deve ser confundido com a falta. Embora o erro seja humano, a sua afirmação não é uma justificativa e sim uma explicação. Erramos porque não somos perfeitos. Erramos porque não fomos ensinados corretamente.

E se erramos, o erro pode ser uma forma de aprendizado? Uma forma sim, mas não a forma. Se você parte da premissa que só se aprende errando tem alguma coisa muito errada em você. Alguns erros são mortais e irreversíveis – paga-se um preço muito alto para se aprender com erros, eis o porque seus ensinamentos são tão valiosos.

Corrigimos o erro para que aquele que erra, tomada a consciência de seu ato, faça direito (ou esforce-se mais) da próxima vez. Não se deve punir o erro e sim punir a negligência, a desatenção e o descuido.

Costumeiramente nos acertamos em zonas proibidas durante os treinos dos cavaleiros da virtude. Isso porque arriscamos acertar e romper defesas cada vez melhores. O pedacinho do ombro que está descoberto está perto demais do pescoço, ou a postura dele deixa um pedaço da cintura descoberta. E o que acontece quando acertamos nossos colegas de treino nesses momentos de tentativa e erro? Pedimos desculpa, sorrimos e entregamos à vitória a quem acertamos. E só. Não precisamos ouvir broncas, nem sermos escrachados na frente de todo mundo. Especialmente não precisamos pagar sapinhos – eu não pagaria já que meus joelhos me abandonariam depois disso.

Eu aprendi com o Dr. Mário Sérgio Cortella que se deve elogiar em público e repreender em particular. E isso fez maravilhas para a minha aula. Imagino como poderia beneficiar centenas de grupos de swordplay Brasil à fora.


A grande lição a aprender aqui é ser parcimonioso. Pergunte a si mesmo: a pessoa errou ou cometeu deliberadamente uma falta? Estou sendo justo na punição? Se fosse comigo eu ficaria com raiva/vergonha e não voltaria no próximo treino? Pense nisso. 


Serviço:
https://draikaner.wordpress.com/o-grupo/boffering/

2 comentários:

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