quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Honra!

O leitor e cartomante Giovanni Borghi de Vasconcellos pediu (ou previu) que eu escrevesse (ou escreveria) um texto sobre a relação honra-honestidade x trapaça-ma fé. Eis o resultado abaixo.
  
Eu me recordo de muitas lições importantes que eu aprendi enquanto treinava kenjutsu no Instituto Niten, em Brasília, sob a atenta supervisão do Senpai Ricardo Lopes. E uma dessas lições ajudou a moldar o meu caráter de forma indelével.

Era uma tarde de outono e estávamos treinando no clube militar do SMU de Brasília. Era uma quadra poli esportiva muito bonita, mas razoavelmente mal cuidada. No final daquela tarde houve alguns shiais (lutas simples) entre os membros mais graduados. Um espetáculo de técnica, estratégia e habilidade. Um desses shiais, já feito em completa penumbra, revelou a luta entre dois senpais muito graduados. Foi lindo e no final um deles – acredito eu que o menos graduado – sagrou-se vencedor. Quando foi anunciada a sua vitória ele mal podia acreditar e permitiu-se uma tímida comemoração. Nada mais que um simples puxão de punho em direção ao peito (o famoso yes!).

Eis que o Senpai Ricardo imediatamente alterou o resultado da luta, dando a vitória para o outro lutador. A explicação foi lacônica: “na vitória ou na derrota as virtudes do bushidô devem prevalecer sobre nossos sentimentos”.

E o que foi que o lutador fez de tão errado? Ao comemorar a vitória ele esqueceu-se de três virtudes do caminho do guerreiro: o Rei (Respeito), o Makoto (Honestidade) e o Meiyo (Honra). Sim, tudo isso com um simples yes!

Foi neste dia que eu aprendi esta valiosa lição que agora compartilho com vocês. Seguir o caminho do guerreiro é dar ênfase à lealdade, fidelidade, coragem, justiça, educação, humildade, compaixão, honra e acima de tudo, viver e morrer com dignidade. Ou seja, ser honrado significa ser o juiz de si mesmo. As escolhas que você faz e como você trabalha para obtê-las são um reflexo de quem você realmente é. Você pode se esconder dos outros e até mentir para eles, mas você não pode se esconder de si mesmo.

E no boffer swordplay poucas coisas são tão valiosas quanto o tripé das virtudes Honra-Honestidade- Humildade (que são, não por acaso, o lema não escrito da Aliança de Beufort). Sabe por quê? Porque, diferentemente de outros esportes de contato, no boffer swordplay, eu preciso confiar na palavra do outro. Enquanto que em outros esportes a catimba, a trapaça, e a mentira são valorizados (gol de mão é mais gostoso...), no swordplay a honestidade, a verdade e a honra é que são valorados. Melhor perder honestamente do que vencer trapaceando.

E justamente essa é ao mesmo tempo a maior fortaleza e maior fraqueza do swordplay: como eu preciso acreditar na palavra do outro, eu só vou saber que ele está mentindo em situações muito óbvias. Mesmo. Dessas que não se pode mesmo esconder. Uma pessoa que queira trapacear ou agir de má fé tem diante de si um terreno amplo e fértil. Afinal de contas, quantas vezes já não no deparamos com pessoas que não aceitam golpes que recebem (os famosos higlanders) ou que são direcionadores de golpes (os não tão famosos drivers)? Só para esclarecer um highlander jamais é atingido, mas um driver é um cara que quando é atingido perto do ombro diz que você o atingiu no pescoço ou em outra área proibida.

E como resolver essa questão? Não é uma coisa simples. Como um bom “advogado do diabo” eu sempre procuro ver todos os lados de uma questão. Pode ser que a pessoa não tenha sentido o golpe mesmo, ou pode ser que ela ainda não tenha entendido que viver e morrer de forma honrosa seja mais importante do que vencer no swordplay. Pode ser que ela ache mesmo que ninguém está vendo, ou que ela ache que assim como ela usa o “jeitinho” brasileiro para se safar de outras situações, pode fazer o mesmo com o swordplay.

De qualquer forma é uma situação espinhosa. Eu sempre comparo isso a dizer para alguém que o seu desodorante venceu ou que ele está com mau hálito... Nunca é uma tarefa fácil.

O que eu posso garantir que funciona à longo prazo é a educação contínua de seus colegas de treino e de você mesmo. É relembrar, de tempos em tempos, que essas práticas não são permitidas, desejadas ou mesmo incentivadas. Que é “feio e errado” trapacear no jogo. Não respeitar as regras é um ato essencialmente egoísta: em busca de uma falsa satisfação de que se é o melhor, você estraga a diversão de todo mundo à sua volta. Sério... Não dá para ter respeito por gente que age dessa maneira.
Em casos rotineiros uma boa conversa e alguma supervisão personalizada costumam resolver. Em casos mais graves uma bronca, e quando a pessoa não aprende mesmo, a suspensão dos treinos e até expulsão. Ou se aprende por bem, ou se aprende por mal.

“E como é que se faz quando o problema está acontecendo num evento? No EPS desse ano eu vi um grupo que não morria nem que dessem um tiro de 38 na cara deles.” Disse a líder de clã com uma bata fashion cor de vinho com borda dourada. Daí eu não sei. Eu tentaria conversar com o líder do clã em questão e se não desse resultado eu falaria com o pessoal do evento. Se mesmo assim não funcionasse eu tentaria evitar esse pessoal em campo de batalha. Neste caso o ostracismo parece ser um remédio amargo mas eficaz.

“Mas e se eu quiser bater de volta no cara, com mais força, para curar o higlanderismo dele na base da porrada?” pergunta o rapaz barbudo, meio clone de Ragnar, com óculos escuros e bata vermelha e amarela. Você pode, claro. Mas eu não aconselho. Aliás eu enfatizo que você não deve fazer disso. Não se cura o mal com o mal.

Então, era isso. Até a próxima. 


Um comentário:

  1. Muito bom Valberto!
    Interessante que essa situação do casso do rapaz do Kenjutsu (que já tive a honra de acompanhar esse estilo), é exatamente como eu faço em minhas aulas de educação física na escola, ainda mais com os pequenos. Tudo com calma, coerência e explicações mediante quando um time se excede na comemoração ou quando um jogador tanta na "caruda" se dar melhor.
    Agora falando na nossa área, além de passar algumas técnicas para os grupos que frequento, também costumo e gosto de arbitrar, e sei do que falas sobres as diversas situações de se o ponto pegou ou não!
    Vale muito ressaltar a calma e até a forma como conversar e agir diante de pessoas assim, não descendo o nível, e se possível mostrando o melhor caminho!

    Parabéns pelo texto, continuarei acompanhando!

    Forte abraço!

    Att: Clériston Sales

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