E tudo começou com um e-mail
Olá tio Betão (rsrsrs)
Como vai? Eu me chamo XXXXXXXXX,
tenho XX anos e atualmente treino swordplay com o grupo XXXXXXXXX aqui de
XXXXXXXXX. Eu sempre leio seu blog e gosto muito da forma que você escreve. (...)
Por conta da faculdade ando meio afastada dos treinos, mas sempre que posso dou
uma escapadinha para treinar. (...) O motivo do meu contato é que eu queria
pedir que você escrevesse um texto falando sobre o assédio que as meninas
sofrem dentro do swordplay. Eu mesma sofri muito assédio quando eu comecei, mas
parece que as coisas deram uma estabilizada. (...) As coisas só começaram a
mudar quando eu me impus e disse que não ia mais aceitar que ficassem passando
a mão em mim. Gostaria que você não citasse o meu nome ou o nome do meu grupo,
até para evitar desavenças. Um dos líderes do grupo é machista pra caramba e
uma vez ele disse que gente como eu (mulher e feminista) não fazia falta no
grupo “dele”. (...) Obrigada.
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Assédio. Poucas palavras mexem
com as pessoas como essa palavrinha é capaz de mexer. Desde que recebi esse
e-mail eu me senti profundamente incomodado. Eu não sou ingênuo para achar que
num esporte tipicamente masculino como é o swordplay não haveria machismo ou
assédio, mas eu não achava que seria tanto.
Tão logo eu tomei ciência da
situação comecei a contatar amigas e conhecidas dentro do jogo. Comecei pelas
pessoas que treinam comigo e depois fui expandindo o círculo de pesquisa até
chegar a jogadoras de outros estados e até mesmo uma pessoa que morava no
Brasil e agora joga nos Estados Unidos. O objetivo deste artigo é, portanto,
dar voz a essas meninas que sofreram nas mãos de alguns “swordplayers”. Este é
um texto para conscientizar e alertar as pessoas sobre esse problema. Quero
deixar claro que nada aqui é “mimimi” ou “frescura”. São todos relatos de dor,
sofrimento e humilhação que foram sentidos por outros seres humanos. Não podem (e
não irão) ser tratados levianamente.
Por questão de segurança vou
chamar todas as meninas deste texto de “Kriger”, que significa “guerreira” em língua
escandinava.
Um universo de possibilidades
A primeira coisa que eu descobri quando
comecei a pesquisar empiricamente sobre o tem é que não existem duas histórias
iguais. Cada menina vê/sente/sofre o assédio de forma diferente, única e
intransferível. Cataloguei casos que iam desde relacionamentos doentios que
começaram no campo de jogo passando por expressões interessantes como “os
meninos alegres” e até meninas que nunca viram/sentiram/sofreram nenhum tipo de
abuso. Mas cada relato deve ser reconhecido e tratado em sua particularidade.
Se temos grupos onde o assédio não existe temos que pensar o que podemos fazer
para que essa boa política se dissemine.
Os relatos a seguir são todos da
mesma cidade.
“Abuso? Não, nunca vi e nem
senti. Até porque o pessoal do meu grupo é muito focado. Não tem tempo para
esse tipo de coisa. Mas se houvesse tenho certeza que o “Mumu” daria um jeito
nele”. (Kriger 2)
“Nunca aconteceu comigo”. (Kriger
3)
“Olha, quando eu comecei eu tenho
de admitir que eu lutava muito mal. Mas era mal mesmo. Eu era o alvo fácil de
todo mundo no campo. (...) Alguns meninos vinham dar abraços com “segundas
intenções” depois do treino, ou comentavam que eu deveria ser fácil porque eu
“pegava de boas na espada”. As pessoas chegavam a dizer eu estava ali só para
conseguir um tipo especial de atenção. Daí eu comecei a agir com “brutalidade”.
Eu já era um pouco antissocial mesmo então ninguém estranhou muito. Hoje eu sou
bem respeitada no meu grupo”. (Kriger 5)
Você não pode porque é menina
Percebi, ao longo dos relatos,
que uma das formas mais comuns de perseguição é a de desmerecer a menina
justamente por ela ter características do sexo feminino. Se um menino se deixa
levar pelas emoções ele é “esquentadinho”, mas se é uma menina ela é
“emocionalmente instável”. Um menino que arruma uma namorada no grupo está
sendo “pegador”; se for uma menina, ela não passa de uma “maria-espadinha”. Se
o cara é derrotado por uma menina ele diz que “pegou leve” com ela. Esse tipo
de coisa é bem mais comum do que se pensa. É o que comumente chamamos de
misoginia.
“Eu tinha começado a jogar fazia
poucas semanas. Tinha ido com o meu namorado/ficante da época e me apaixonei
pelo esporte. (...) Eu fiquei sabendo que haveria um EPS já no começo do mês
que vem. Quando eu disse que queria participar do evento foi uma loucura.
Disseram que eu não podia porque eu era muito fraca e tinha pouco tempo de
treino. Nas palavras deles eu ia ‘manchar a reputação do time’ porque eu era
‘inferior’ aos outros ‘jogadores selecionados’ para participar. Aceitei meio a
contragosto até descobrir que um ouro colega de treino, bem mais fraco do que
eu tinha sido selecionado para ir ao evento. Quer dizer, eles não se
preocupavam se um cara poderia manchar a reputação deles, mas se fosse uma mina
era certeza disso acontecer. Fiquei tão chateada com isso que fui ao EPS com um
tabardo preto que eu mesma cortei e costurei na véspera. Fui como mercenária. Isso
tem três anos. Tem gente do grupo que não fala direito comigo até hoje”.
(Kriger 10)
“No meu grupo tínhamos um sistema
de graduação bem eficiente. Pelo menos era isso que eu pensava. O teste para
sargento acontecia quatro vezes por ano. Eu fui reprovada em todas as quatro
vezes. Na última vez eu fui até o sargento que estava conduzindo os testes e
perguntei o que eu poderia fazer para melhorar e assim passar no teste. Ele
estava distraído e por isso eu acho que ele respondeu com sinceridade: Você tem
que nascer de novo, porra! Mas vê se dessa vez nasce como homem, porque
enquanto eu for sargento e cuidar da graduação, você não passa. Fiquei arrasada
e só não desisti de frequentar o treino por causa de alguns amigos maravilhosos
que fiz por lá. Mas nunca mais tente fazer o teste de graduação de novo”. (Kriger 7)
“Um dos motivos de eu não ter ido
para São Paulo com o pessoal foi justamente o assédio. Um colega veio conversar
comigo via chat. A princípio ele queria tratar apenas de assuntos da viagem,
sobre swordplay em geral, mas depois ele se mostrou diferente. Ele começou a
falar dos meus seios, que por serem muito bonitos e chamativos, ele estava com
muita vontade de pegar. No começo achei que se tratava de uma brincadeira sem
graça. Eu avisei para ele parar de ser zueiro, mas ele continuou,
insistentemente, dizendo que eu já estava avisada. Falou que ele ia pegar mesmo
e que não adiantava eu ficar de “cu doce” pro lado dele”. (Kriger 4)
Ataques de onde menos se espera
Outra das coisas que ficou
patente é a relação de cumplicidade e conivência que alguns swordplayers têm
com os abusadores. Muitos dos abusos aqui relatados aconteceram sob a luz do
dia, no campo de treino, com pessoas em volta. Existe um corporativismo muito
grande dentro dos grupos de maioria masculina. Muitos deles acham que não tem
nada de mais no que é feito e que tudo não passa de “cu doce” ou “mimimi” por
parte das meninas. Um paradoxo dessa cultura machista é justamente o desejo que
muitos grupos têm de terem mais mulheres jogando. Esse paradoxo leva a criação
de uma figura interessante, batizada por uma das entrevistadas de “menino
alegre”.
“Então, como eu só vou ao
swordplay com o meu namorado, os meninos não chegam nem perto (risadas). Como o
grupo que estou atualmente, que é o único que eu conheço, todos me respeitam. E
Muito. Eu percebi que eles são bem carentes de meninas. Quando eles veem uma
mulher que jogue, eles ficam bem animados. Eu acho engraçado isso, já que eu
estudo psicologia. Os meninos querem as meninas jogando, mas eles as querem
apenas como objetos de decoração. Por isso que eu acho que tem meninos que
forçam a barra, sabe? Eles ficam rodeando as meninas cheios de boa vontade e
disposição, mas tiram uma casquinha na primeira oportunidade. Eles não sabem,
mas a gente percebe. Eles são os meninos alegres”. (Kriger 11)
“O meu antigo rei parecia um cara
muito bacana... mas só parecia. Uma vez quando estávamos sozinhos, ele
sussurrou no um ouvido: ‘se eu me separar da minha esposa, vou dar em cima de
você e vou te mostrar o que é ser um homem de verdade’. Eu fiquei passada.
(...) você acredita que em outra ocasião ele quis se meter na vida amorosa de
dois colegas de treino? Eu achei o ó.” (Kriger 12)
“Num evento desligado do
swordplay, um clã especifico foi mostrar e vender equipamentos num evento do Ibirapuera.
E eu fui dar uma olhada, com a minha lança própria e tudo. Conversa vai,
conversa vem, já me soltam essa ‘ah, mas a lança tá bem ruim né? Eu sei que é
meio difícil pra menina fazer arma bonita, cê não quer que eu conserte ela pra
você?’ Como se tivesse algum nexo, sabe? A minha lança foi feita pelo nosso
armeiro, que é muito talentoso, com a minha ajuda. Fizemos juntos por que o EPS
tava chegando e ele queria me incentivar a continuar treinando. E ela é
completamente funcional, eu fiquei ofendida pra caramba. (...) Aí logo depois
eu fui treinar com alguns lanceiros do mesmo clã. Tiramos uns x1 e conforme eu
ia ganhando, cada vez mais incrédulos eles iam ficando. O cara chegou ‘até que
pra uma menina você sabe usar lança, parece homem’. SEM BRINCADEIRA. E pelos
esportes que eu fiz, eu já fui tão chamada de homem que eu não aguentei e
revidei ‘Não pareço homem, eu só sou mulher que é melhor que muitos caras’. E
ele ficou com aquela cara de ‘Ah, tanto faz’.” (Kriger 14)
“Uma vez fui num evento com
vários grupos aqui em Brasília. Eu lutei com um cara e ele elogiou muito o meu
jeito de lutar. Tiramos vários x1. Teve uma hora que começamos a andar em volta
do evento. Esse garoto passou o braço pelo meu ombro e começou a conversar todo
íntimo, me elogiando. Ele tava caminhando pra uma outra parte do bosque e eu na
conversa não tava percebendo. Ai quando eu percebi ele tava praticamente na
minha cara. O XXXXXXX que teve que me tirar de lá. Depois que ele me viu de
novo ele falou ‘O cara era seu namorado? Pede desculpas pra ele pra mim’. Como
se ele não devesse nada pra mim.” (Kriger 16)
“O principal problema comigo não
foi o assédio dos ‘garotos felizes’ (gostei desse termo, vou usar!) foi mesmo
ter minha moral e o respeito dos membros do grupo jogada na lama. Eu não sou
uma mulher que gosta de ser tratada como donzela, muito menos ter minhas ideias
menosprezadas, minha personalidade barraqueira começou a se destacar por brigar
pelos meus pontos de vista, chegando até ser ignorada por um dos líderes e que
até hoje não faz questão que eu frequente os treinos.” (Kriger 15)
“Minha formação de Swordplay
começou no XXXXXXXX, em XXXXXXXX. Fiquei anos treinando com a galera, o que foi
muito legal. Daí surgiu uma oportunidade de trabalho e me mudei para os EUA.
Descobri um grupo que se reunia semanalmente perto de casa. Um grupo filiado ao
Dagorhir. Quando eu fui lá fazer a minha inscrição perguntaram o que eu queria
fazer: se era para ser dama de companhia, costureira, ajudante de ferreiro...
eu disse que queria lutar e focaram espantados. Eles são muito machistas e
fazem questão de ‘bater com força’ nas meninas. Mas não deixo por menos. J uma vez um dos caras
quase trinca minhas costelas. Eu só sosseguei quando derrotei ele num torneio,
ano passado.” (Kriger 20)
Tem muito mais disso aqui.
Eu tenho muito mais relatos. Mas resolvi
deixa-los de fora porque o texto já está grande demais e acho que todo mundo já
entendeu. Precisamos trabalhar por uma solução. Assim, essa solução passa
necessariamente pela busca de uma melhor gestão do esporte e de suas relações
dentro dos diversos grupos, que deve ser feita coletivamente. Isso exige que os
problemas sejam enfrentados de forma sincera e organizada, por todos aqueles
que estão submetidos a esta estrutura. A denúncia e punição dos assediadores é
bastante importante, pois cessa a violência exercida pelo membro em questão,
além de demonstrar cada vez mais à toda todos os swordplayers que as mulheres
não estão submissas a essas violências e que o assédio não sairá impune.
Enfim, dado o fato do assédio ser
sistêmico, constituindo-se como um problema de toda a classe dos jogadores de
swordplay, o combate a ele tem de ser, também, coletivo. Todos sofrem com o
assédio, seja como vítima, como testemunha, seja pelo medo de poder vir a ser o/a
próximo/a assediado/a. Por isso é crucial a solidariedade e ação coletiva para
acabar com esta prática, fortalecendo os jogadores contra esses assediadores.
Resumindo... Enfim, a luta é
muito grande e há muito o que fazer, porém se a categoria de jogadores de
swordplay estiver unida e lutar junto é possível acabar com esse mal, que
cresce no nosso meio. Se você está sendo assediado, procure os líderes do seu
grupo, ou alguém que você confie. A união é um importante instrumento na luta
contra os casos de violência no esporte.
Parabéns pelo texto, vi casos de sujeitinhos com medo de perder pra uma mulher apelar pra força excessiva por não aceitar ser derrotado por uma mulher com mais habilidade que ele. Por sorte isso não foi no meu grupo, mas que fique de alerta a todos os líderes assim como eu.
ResponderExcluirOi Betão! O escritor do Swordplay Brasil aqui outra vez.
ResponderExcluirCara, tenho que admitir que fiquei muito incomodado com os relatos que li. Ainda não presenciei eventos como esses no grupo em que faço parte de administração atualmente e não me lembro se algo assim ocorreu no grupo em que me iniciei no swordplay, entretanto me serviu de alerta. Vou ficar mais atento para tentar prevenir que coisas assim venham a acontecer dentre meus parceiros de treino.
Já compartilhei o link com meu clã. Quero ver o que pensam sobre o assunto. Espero não ter más notícias depois disso.
Um abraço!